Se você achou que só de livros vive a comunidade literária, achou errado. Também vivemos de fofocas e polêmicas!
Eu tenho acompanhado de perto muitas controvérsias literárias que rolaram aqui e na gringa no último ano. Algumas nunca chegaram ao conhecimento do público brasileiro, ou foram pouco divulgadas. Como muitas delas envolvem questões de racismo, representatividade e falhas sérias do mercado editorial , achei que seria bom traze-las á luz. Quer conhecer algumas?

Jessica Cluess – envenenada pelo ódio

Jessica Cluess à esqueda, Lorena German à direita.

A autora de YA Jessica Cluess mostrou uma faceta assustadora no Twitter, no fim do ano de 2020.

Em uma discussão sobre um projeto educacional que busca incluir clássicos mais modernos ( pós década de 1950) no currículo escolar dos EUA, a autora tomou as dores dos puristas, ofendendo e gritando obscenidades a uma das fundadoras do movimento #DisruptTexts, chamada Lorena Germán. A discussão, que era acadêmica e voltada a professores que buscam um conteúdo educacional antirracista, chegou até a autora do livro Uma sombra ardente e brilhante (em inglês, “A Shadow Bright and Burning”) , e, em uma série de tweets, ela deixou todo mundo perplexo com suas ofensas de cunho abusivo, desrespeitoso e racista. Eu não vou postar os prints dos tweets por respeito, porque mais parece um surto. Em um deles, ela chama a professora de “vadia” e, em outro, manda ela tomar “naquele lugar” por defender que certos livros de autores cis brancos deveriam ser substituídos no currículo escolar.

Resultado : cancelamento e boicote aos seus livros foram temas comuns no segundo semestre de 2020. Inúmeros pedidos de rompimento do contrato chegaram a editora dela, afinal, ela escreve para faixa infanto-juvenil e ofendeu professores desse público. O agente literário de Jessica, o famoso Brooks Sherman, que ficou calado no primeiro momento, aproveitou para critica-la abertamente no Twitter quando a situação se complicou, e decidiu deixar de representa-la.
A autora se desculpou em uma carta aberta que, pra muitos, continuo bem problemática no conteúdo.

O pior é que ainda temos pessoas defendendo Cluess, e afirmando que os clássicos precisam ser mantidos a tudo custo, sem qualquer consideração ou atualização. A jornalista Meghan Cox Gurdon escreveu uma peça de opinião para o Wall Street Journal, chamada ” Even Homer Gets Mobbed, ( algo como “Até Homero vai ser atacado”) , no qual ela acha desnecessário o movimento  #DisruptTexts , e que só com clássicos as crianças são verdadeiramente “educadas”. Elas simplesmente ignora a importância da representatividade literária na formação de crianças.

Leia mais sobre o assunto:

https://nypost.com/2021/01/02/author-canceled-after-defending-classics-attacking-educator/

https://fozmeadows.wordpress.com/tag/jessica-cluess/

Brooks Sherman- editor estelionatário?

Brooks Sherman

O mais louco de tudo é que Brooks Sherman, o ex editor da dona Jessica Cluess, segundo relatos de bastidores, também não é flor que se cheire !

Logo depois das controvérsias envolvendo a autora mencionada acima, Sherman teve de sair da empresa de agenciamento que trabalhava diante de inúmeras queixas.

Essas queixas, que foram compartilhadas no Twitter, trazem uma ideia de estelionato : foi acusado de modificar números nos contratos, de mentir sobre direitos de publicação, de fingir levar manuscritos de autores às editoras (parece que enganou muitos autores pequenos dizendo que o material havia sido rejeitado), de criar rumores e mentiras sobre determinados autores para favorecer outros…. Ah, temos várias acusações de importunação sexual também.

O mais chocante é que, à boca pequena, nos bastidores, sua fama de estelionatário e predador sexual já era conhecida, mas muitas manobras eram feitas pra desmerecer suas vitimas.

Ainda que pareça um nome qualquer (eu não conhecia essa pessoa até o escandalo), ele era muito procurado e grande influenciador na contratação de novos talentos, e usava nomes grandes em YA como Angie Thomas e Becky Albertalli (que eram agenciadas por ele até poucos meses atras) pra atrair outros autores. Com as acusações expostas em redes sociais, ele perdeu os clientes mais famosos, e também sua credibilidade.

Algumas leituras a respeito:

https://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/industry-news/people/article/85617-lit-agent-under-fire-from-former-clients-including-bestselling-ya-author.html

https://www.kirkusreviews.com/news-and-features/articles/angie-thomas-drops-agent-amid-controversy/

#PublishingPaidMe – racismo e sexismo às claras.

As editoras também não escaparam da berlinda nos últimos tempos.

Com a tragédia de George Floyd, no primeiro semestre de 2020, houve um grande movimento da mídia como um todo clamando por ações antirracistas e responsabilidade social. Na comunidade literária , a maior controvérsia foi o #PublishingPaidMe ( em português, algo como #aeditoramepagou ), um movimento que deixou claro o quão dispare, elitista e racista as grandes editoras ainda são.

A hashtag começou com a autora de YA L.L. McKinney, que, como autora negra, entendia que os valores recebidos em contratos de publicação de escritores negros era bem menores do que de escritores brancos. Mas o abismo entre os valores supreendeu a todos, e deixou claro o racismo sistêmico.

O autor Chip Cheek ( autor do livro Cape may, ainda não lançado por aqui) , por exemplo, tuitou que recebeu um adiantamento de 800 mil dólares por seu primeiro livro lançado, e ficou em choque ao saber que a autora Jesmyn Ward, primeira mulher a ganhar o Premio “National Book Awards” DUAS vezes, precisou brigar muito para conseguir um adiantamento de 100 mil dólares por suas novas obras, mesmo depois de premiada.

Uma descoberta que partiu meu coração foi N.K. Jemisin, autora que ganhou três prêmios Hugo em sequencia , um para cada volume de sua trilogia “Terra Partida”. Ela recebeu SOMENTE 25 mil dólares por cada volume ! E mesmo agora, premiada, a sua nova série ( série cujo primeiro volume, “Nós somos a cidade” já está à venda) só rendeu no contrato 60 mil dólares por livro, o que é um absurdo se comparado a autores de renome que ganharam prêmios literários.

Valores recebidos por NK Jemisin como adiantamento .

O movimento ainda gera repercussão e rompeu o silêncio sobre as negociações e engrenagens de agentes literários e empresas de publicação.

Autores e autoras brancos recebem mais por seus livros de estreia do que autores negos já reconhecidos.

Não é disse-me-disse, nem fofoca, é FATO.

Foi duro ler e ouvir autores renomados dizendo que, mesmo depois de X ou Y prêmios recebidos, sua editora ainda não os considerava “elegíveis” para cachês maiores. Isso significa que, por conta dos baixos valores, autores negros não podem largar seus empregos originais para dedicarem-se a arte da escrita, precisam do apoio dos fãs via financiamento coletivo ( N K Jemisin usa essa ferramenta),recebem menos recursos para design/artistas de capa e para as campanhas publicitárias dos seus livros.

Se você quiser entender mais sobre as idiossincrasias do mercado editorial, recomendo olhar a hastag no Twitter ou verificar artigos e matérias como as que deixo aqui abaixo. Infelizmente não achei nenhuma em português para compartilhar com vocês.

https://www.latimes.com/entertainment-arts/books/story/2020-06-12/publishingpaidme-campaign-prompts-va

https://www.theguardian.com/books/2020/jun/08/publishingpaidme-authors-share-advances-to-expose-racial-disparities

https://www.lappthebrand.com/blogs/culture/publishingpaidme-a-hashtag-to-expose-racial-disparities-in-the-book-industry

Jeanine Cummins – caricatura barata?

Jeanine e seu livro.

O lançamento do livro Terra Americana ( American Dirt, em inglês) foi cercado de polemicas.

Jeanine Cummings foi bastante criticada por ele logo antes do grande lançamento. Foi acusada de apropriação cultural e rechaçada pelo desserviço com questão na representatividade latina mexicana no seu livro. Autores e especialistas de grande peso se posicionaram , identificando vários problemas de caricaturização, e relativização de problemas sérios envolvendo imigração e representatividade. Houve ainda suspeitas de possível plágio – a autora mesma depois assumiu que certos autores/trabalhos citados serviram de inspiração para a sua obra .

O livro foi rapidamente taxado de “trauma porn”, porque parecia tirar prazer do sofrimento alheio, sem qualquer aprofundamento. Outra questão bem pesada foi o uso de expressões e palavras em espanhol totalmente fora contexto, não idiomáticas, no seu texto. Para alguém que disse ter feito uma pesquisa de cinco anos para a publicação da obra, hoje desconfiamos dessa afirmação.

Se não bastasse o problema do material em si, foi sabido que o livro recebeu uma soma muito fora do comum, mesmo sendo a autora estreante. Com isso, prova-se que o mercado editorial ainda não faz o dever de casa no que concerne representatividade . Como autora branca escrevendo um livro sobre vivencias latinas ela recebeu MAIS que os próprios latinos que são veteranos e escrevem suas vivências há décadas.

E não parou por aqui. As controvérsias se amplificaram com o marketing de lançamento do livro, considerado bastante ofensivo no seu design como mostra a foto abaixo. Dentre as fotos desse lançamento, postadas pela própria autora, uma foca no arranjo de mesa com arame farpado, remetendo as cercas que separam as fronteiras entre EUA e México.

sim, muros e arame farpado de enfeite !

Logo, uma carta assinada por mais de cento e quarenta autores latinos foi enviada a Oprah Winfrey , que, junto com sua equipe, havia escolhido Terra Americana para leitura no Clube de leitura da Oprah , o que elevou as vendas do material problemático. O texto da carta deixa bem claro que não se pede cancelamento ou censura , mas urge analise critica de um material faltoso.

Oprah preferiu fazer desse limão uma limonada, e levou a autora a seu programa para tratar do livro.

E foi assim que um livro ruim virou um bestseller.

O livro teve os direitos comprados pela editora Intrinseca e foi lançado no Brasil em 2020. Eu fique extremamente triste com a insistência dessa publicação, quando já se sabia toda a problemática da obra. No entanto, a iminência de uma adaptação para TV tornou a história mais interessante pro mercado.

Aqui no Brasil o livro teve boas criticas, até, mas acredito que isso aconteceu por falta de conhecimento nosso para com outros países da America Latina. Há um certo descaso com a história do continente, e pouco interesse com assuntos internacionais. Também acho que, porque estamos acostumados a representações e estereótipos simplórios/superficiais de figuras latinas, quem gostou nem seu conta do que realmente leu.

Leia mais sobre o tema nesses artigos :

https://tropicsofmeta.com/2019/12/12/pendeja-you-aint-steinbeck-my-bronca-with-fake-ass-social-justice-literature/ – esse artigo é mais incisivo nos problemas da obra para a representatividade latina. A autora Myriam Gurba , foi ameaçada de morte por tê-lo escrito.

https://lithub.com/dear-oprah-winfrey-82-writers-ask-you-to-reconsider-american-dirt/

https://davidbowles.medium.com/american-greed-who-enabled-cummins-3364f0d8a8cf

https://www.vulture.com/article/american-dirt-jeanine-cummins-book-controversy.html

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/escritora-americana-branca-e-criticada-por-escrever-livro-sobre-mexicanos-que-e-lancado-no-brasil.shtml

Para um bom resumo dessa controvérsia, vale a pena ler esse post do Literatura Inglesa Brasil:

https://literaturainglesa.com.br/resenha-por-que-american-dirt-e-um-romance-problematico/

E o que tudo isso prova?

Prova que o mercado literário pode até parecer, mas não está imune as transformações politicas e sociais. Cabe também a todos nós, leitores, buscar informações sobre autores e obras que lemos. Precisamos fazer nossa parte, buscando consumo mais inteligente, expondo as falhas do mercado e ativamente trabalhando para uma comuniade literária mais etica e representativa.

Gostaram? Conheciam algumas dessas polêmicas?

Em breve eu trago mais controvérsias literárias para vocês !

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